quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

MÃE

“Filho tem cuidado! Andas mal vestido e está tanto frio! Dou-te tanto trabalho, filho!” São as últimas frases que ecoam na minha cabeça dos milhões de recomendações, de conselhos, de sábias conclusões que tu, Mãe, tecias sobre mim, sobre a minha vida, sobre a tua neta sobre os governantes, sobre tudo o que te vinha à cabeça a uma velocidade frequentemente vertiginosa. Como falavas mexias-te. O "tio major" chamava-te “arrastadeira com motor de cadilac”. Esta energia durou, durou e durou comigo em criança, comigo em adolescente, com o meu pai toda a vida e com o meu pai doente. Lutaste, com a tenacidade que só as Mães têm, três anos contra um coração cansado, o do meu pai. Passavas já a barreira dos oitenta, Mãe e fizeste tudo para que o meu pai se sentisse feliz até ao fim da vida. Fizeste tudo, Mãe, para que toda a gente à tua volta se sentisse feliz.

As meias verdades que às vezes disparavas serviam apenas para esconder pequenas maldades que eu fazia e que o meu pai nunca puniria, mas ao ver-te esconder partes das estórias sentia-te solidária e sentia-me simultaneamente culpado das tuas quase mentiras e tive muitas vezes vergonha de ser o objecto dessa solidariedade.

"Mãe" desde hoje é uma representação disto tudo mas de muito mais: da verdade absoluta e intangível, do verdadeiro sentido da vida. A última fibra dos milhões que formam o cordão umbilical quebrou-se ontem às 16.30 h. Senti-me desnascer. Senti a necessidade absoluta do retorno ao espaço, ao tempo, que não sei, mas sei que é o ponto de intersecção onde tu foste sempre solidária comigo, assim, p'ra além da vida. Senti que partia sozinho para a aventura do reencontro.

A tua imagem à porta, a chamar a iris para me verem ambas partir de mota. Zangares-te com a cadela porque não vinha, só tu Mãe! Só tu eras capaz de temer aquela enorme máquina - "filho tem cuidado com a mota... o frio que apanhas ! Oh meu Deus!" - e sentir ao mesmo tempo um imenso orgulho de ver o teu filho montado naquilo.

As recordações que guardo de tua cara bonita, do teu corpo pequenino e gorducho, da tua irrequietude que não te deixava parar à mesa mesmo quando éramos teus convidados, do teu sorriso aberto e franco de mulher do sul, são o meu primeiro e único oráculo. Não de um Deus qualquer maniqueísta, masculino, punitivo. Não Mãe! Partiste como milhões de mães, fundiste-te numa consciência universal profundamente feminina que ainda é o garante deste precário equilíbrio em que vivemos. É esse o caminho de retorno que me mostraste ontem às 16.30h.

Não! Mãe, não falo de nenhuma experiência esotérica, falo das memórias, das estórias, dos teus silêncios, dos pensamentos que me lias em palavras fingidas que inventavas para materializar a vida. E tão bonita que era essa VIDA! É isso que me está a invadir o pensamento diluído nas lágrimas que não evito. Se há algo sagrado na VIDA só pode emergir dessa representação a que chamamos MÃE.

MÃE és tu, já incorpórea, mas materializada em tudo aquilo que sou, mas és muito mais do que isto, és aquilo que querias para mim e lutaste por mim e eu não consegui ser. Assim te perpetuas nos meus sentimentos, nos meus desejos, nos meus sonhos. Mas não deixa de ser muito triste, MÃE, chamar-te e não apareceres a sorrir numa dimensão tangível. Nunca mais isso vai acontecer MÃE! Milhões de mulheres e muitos milhões de seres vão chamar Mãe e poder beijar esses muitos rostos sorridentes. Eu já não posso.Os últimos tempos MÃE foram um paradoxo: a doença teimava em afastar-te mas a nossa força uniu-nos como no princípio em que eu era uma criança e o teu colo o meu universo.É fácil ter um universo assim, é confortável, é quente. Mas tu fisicamente já não podias MÃE, já tinhas gasto as tuas forças em 84 anos de vida. Compreendo! Mas isso em nada alivia a dor.Ontem às 16.30h, um pedaço de mim desnasceu, mas simultaneamente renasceu em mim uma vontade brutal de vencer a minha própria inércia e de mergulhar bem fundo neste ser que criaste numa procura permanente das raízes que plantaste e voltar a fecundar este solo de terra, mar, MÃE.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Refúgio Aboim Ascenção - Pelo Direito a um Colo

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A caravana pela felicidade teve como objectivo principal o Refúgio Aboim Ascenção. Este nome soava-me, lembrava-me um psicólogo vestido de preto, que raras vezes vi na televisão a comentar casos ligados a abandono de crianças. Esse homem fala com uma linguagem clara, diz o que pensa por isso passa a imagem, incómoda para o stablishment, de um profundo inconformismo. Refiro-me a Luís Villas Boas, psicólogo, ex Coronel de cavalaria, e combatente, quase guerrilheiro, pela felicidade de crianças abandonadas ou vítimas de maus-tratos. A luta diária travada por Luís Villas Boas e uma equipa imensa de gente, com formações diversas, faz-se pelo direito que cada criança tem a um Colo. Este direito foi e é o paradigma do Refúgio Aboim Ascensão. Moral e juridicamente estamos de acordo, as crianças têm direito à alimentação, a um tecto, à educação e genericamente aos afectos dos pais. E quando não têm pais e quando os pais as abandonam ou as maltratam? No Refúgio Aboim Ascenção essas crianças encontram um Colo. E encontram uma equipa de gente que, nas mais variadas áreas, luta para esse direito determinar um caminho e traduzir-se numa vida feliz. A batalha tem muitas frentes, a jurídica, a institucional, a emocional mas a equipa do refúgio é uma equipa ganhadora.
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Luís Villas Boas ao longo das 2 horas de visita guiada desafiou-nos, fez-nos rir mas também fez-nos vir as lágrimas aos olhos. Disse-nos mais do que uma vez: “quando saírem daqui não vão ser capazes de contar o que viram.”
Eu já repeti a estória da visita 4 vezes, primeiro à Elisabete, depois a vários grupos de amigos. A estória convence toda a gente mas as emoções que emergem de um humanismo arrebatador, de uma consciência que está bem para lá dos processos funcionais e das estruturas que atravessa, essas, são vividas diariamente no Refúgio Aboim Ascensão e nós, grupo de motoqueiros imbuídos do espírito natalício, tivemos o enorme privilégio de as viver em duas horas de contacto com aquelas crianças e aquela equipa.DSC02221
O Refúgio acolhe crianças até aos 6 anos, tem muitas dezenas de Bebés, e trava uma batalha diária pela adopção dessas crianças. Para corresponder ao desafio do Luís Villas Boas eu diria que o refúgio é um espaço de esquecimento e esperança. Esquecimento dos maus tratos, dos momentos terríveis do abandono, das violações. Esperança numa nova família adoptiva, numa nova matriz humana de afectos. Tudo isto se inicia activamente no refúgio. O Refúgio é um espaço de habilitação à vida. Todas as salas, todos os rostos de adultos e de crianças transpiram uma felicidade contagiante. Ali os bocadinhos estilhaçados do puzzle de cada vida são reagrupados e assim produzem-se novas VIDAS. Aquela gente sabe que as crianças merecem tudo, aquela gente conhece profundamente os legítimos interesses de cada criança, aquela gente propicia aquelas crianças terapias e cuidados ao nível do que de melhor se faz no Mundo. Isto não se explica, vivência-se numa visita ao Refúgio Aboim Ascenção.

O tempo de permanência no refúgio, de cada criança, não deve ultrapassar os 18 meses, é importante não criar laços, é importante que cada criança sonhe com a sua nova família e a reencontre rapidamente - o estado, a segurança social, os tribunais dificilmente acompanham esta necessidade. Os tempos de trabalho desses técnicos todos esgotam-se entre as 9 h e as 17 h. No refúgio vivem crianças que necessitam de … colo das 9 h às 21 h e das 21 h às 9 h.
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Quanto aos laços quando perguntei ao Luís Villas Boas se esse período curto de 18 meses não sobrava para criar laços para toda a vida entre os adultos que ali trabalham e as crianças respondeu-me: quando cada criança sai elas (as técnicas) choram como madalenas. Nesse momento fiquei convencido que o mesmo se passava com o Senhor Coronel. Perdão: Um Coronel não chora como uma madalena, um Coronel chora como um HOMEM.

CARAVANA PELA FELICIDADE

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A partilha da felicidade é algo difícil num sociedade que estimula o individualismo. Nós sabemos gerar momentos de felicidade, sabemos no fundo continuar a brincar, relacionamo-nos mais uns com os outros, passeamos juntos, promovemos encontros, usando estes objectos/brinquedos caros que são as motas. Se nos mobilizarmos saberemos seguramente envolver mais gente nestes nossos caminhos da Felicidade.
Numa conversa de amigos, iniciada pelo Aires Pereira, sobre o que se pode fazer para acrescentar felicidade sobretudo a crianças vítimas de qualquer tipo de exclusão social imaginámos uma caravana de motas a percorrer o país de norte a sul e a recolher brinquedos, meios informáticos, roupas, alimentos e a transportar tudo isto para um conjunto de instituições que reconhecidamente lutam pela conquista de espaços de inclusão e pelo direito à felicidade destas crianças. O Luís Castelos, irrequieto como é, (isto não vai com acomodações a partilha da felicidade resulta da inquietação de todos) contactou o Refúgio Aboim Ascenção que achou a ideia fantástica e disponibilizou-se para receber e ser um interface com outras instituições sociais da Região.
Há acções em que uns são mais protagonistas que outros, uns lideram e outros alinham. Esta só resulta, nos seus objectivos mais puros, se TODOS formos protagonistas , se TODOS formos líderes, se ultrapassarmos os nossos pequenos e pontuais desentendimentos e formos TODOS solidários.

Por isso, porque temos que nos implicar TODOS. Entendemos os 3, que acidentalmente encetámos a primeira conversa sobre o assunto, que devíamos avançar com uma onda de solidariedade com todos os rostos que se queiram associar e não com o rosto de um clube ou de outro. Queremos evidentemente o envolvimento e todo o apoio dos grupos, dos clubes, das empresas, dos media. Vamos avançar cada um com o seu próprio rosto e fundamentalmente com um sorriso no rosto o que é em grande parte um contributo decisivo para a felicidade destas crianças.
A caravana de Motas tecnicamente resultava complicada a atravessar o país todo. Assim propomos que em cada local, em cada cidade, em cada região um companheiro se responsabilize para recolher objectos em bom estado. Arranjaremos forma de, em dado momento com uma carrinha (podia mesmo ser a do GWCP trataremos de pedir este apoio formalmente à direcção do Clube), recolhemos todo o material. No dia D a Caravana da Felicidade inicia-se em todos os locais do país, conflui para Évora e daqui parte para o Algarve. No Refúgio faz-se a entrega disponibilizamo-nos para fazer curtos percursos de mota com as crianças (eventualmente em recinto fechado). Num momento de felicidade pode-se viver uma VIDA.
É isso, mais que a mera caridade que queremos com toda a nossa inquietação propiciar a essas crianças. Claro que isto terá uma logística posterior de encontro (Jantar, alojamento, etc.) . Aceitam-se sugestões e sobretudo era bom que os companheiros nos vários locais se disponibilizem para promover a ideia e aceitar e armazenar temporariamente os objectos.



Evidentemente que tudo isto só resulta com o empenho de todos. Até ao momento assumiram-se como mobilizadores locais e receptores de objectos o Luís Castelos em Évora, o Aires Pereira em Mora, o Bruno em Samora Correia e o Carlos silva, presidente do GWCP, em Famalicão. Alguém disse: é urgente a felicidade. Se não disse poderia ter dito isso, e poderia ainda acrescentar: são vitais para o mundo os sorrisos de todas as crianças. Nesse sentido, no sentido de tornar exequível a nossa capacidade de contribuir para isso, é urgente haver mais pontos de recolha, haver mais gente a mobilizar outros com ou sem mota, com qualquer tipo de mota. Vamos todos dar largas ao nosso egoísmo e dar-nos o enorme prazer de sentir que fomos nós que ajudamos a construir momentos de felicidade na vida de algumas crianças. Vamos dar largas ao nosso altruísmo e cumprir os desígnios morais e éticos que nos pautam os princípios.