quarta-feira, 13 de agosto de 2008

de mota para a madeira - parte 1

Desta vez não houve véspera. O dia antes da partida ficou estranhamente distante, isto porque a partida aconteceu às 21.30h de Portimão. Claro que devia ter começado por dizer alguma coisa mais assertiva que permitisse ao incauto leitor perceber que estava a iniciar o relato da minha viagem de mota à madeira. Como não comecei assim, provavelmente isto vai correr de forma pouco previsível, tanto mais que a tentativa de escrevinhar notas de viagem não passou de uma escassa meia hora à mesa do restaurante do volcán de tijarafe. Quanto à véspera entenderam-me! O dia anterior à partida foi cedo demais para fazer malas, ensaiar fixá-las na scooter, e todas aquelas coisa que se fazem na véspera. Bom! Está na altura de tentar organizar uma estória razoavelmente inteligível.
Quando nos chegaram as primeiras informações da recém criada linha marítima para o funchal com um ferry, de seu nome volcán de tijarafe, rimo-nos da ideia: Ir à madeira de mota? Não! Nem pensar! A figura ridícula, um tanto boçal, do presidente do governo regional atravessava, por essa altura, a estranha possibilidade de ir à madeira … de mota. No entanto e apesar do alberto joão e da sua carga hegemónica, a ideia tinha qualquer coisa que a empurrava para fora do patamar das ideias parvas que importunam os espíritos, mesmo os mais esclarecidos e distintos. Eu tinha estado na madeira em 1976. Lembrava-me de um território muito verde, com bananeiras, que nunca tinha visto, e com poucos centímetros quadrados por cultivar. Ficaram-me na memória imagens de pessoas a trabalhar em socalcos onde algumas cabras do continente provavelmente teriam receio de pôr as patas.

Lembrava-me das muitas provas de vinho da madeira e dos desvarios próprios dos 16 anos. Lembrava-me também de percursos lindíssimos em caminhos sinuosos, estreitos e com inclinações abruptas. Mais tarde percebem, como eu percebi assim que o vi, que também me lembrava do cachalote. Os trintas anos que passaram não acrescentaram nada de atractivo à imagem com que fiquei da madeira, pelo contrário, pelos motivos evidentes e já aflorados, com o tacto possível, mais acima.
Esse estranho e inexplicável efeito de empurrar uma ideia de um patamar para outro deve encontrar, no mínimo, um sentido no acaso e, às vezes, no absurdo. Foi portanto por acaso que fiz uma simulação na net do custo da hipótese absurda de viajar de mota para a madeira. A coisa começava a ganhar contornos de verosimilhança. O vil metal afinal determina tudo, ou quase tudo, e os 450€ significavam uma redução para metade do custo de um outro projecto de viagem que pairava lá por casa nesse tempo. Eu, que sou militante das ideias, vi-me confrontado, não pela primeira mas certamente pela enésima vez, com um determinismo do material sobre o imaginário.
É barato, que se lixe o jardim! Vamos à madeira … de mota!
A véspera, com o sentido simbólico que já perceberam que esta não teve, teria acontecido se não fosse brutalmente atropelada pela caravana do rally vinho da madeira. O barco, ou navio para os entendidos, parte regularmente de Portimão aos domingos às 12.00h. O único domingo em que isso não aconteceu foi exactamente aquele em que estes vossos amigos escolheram viajar. O acordo com a organização do rally fez com que a partida desse domingo fosse agendada para as 21.30h e realizada às 22.30h. Neste momento a voz da musa sobrepõe-se aos meus pensamentos dizendo insistentemente: não podes pôr na narrativa tantos pormenores porque depois isso é chato para os leitores. Ela tem razão por isso passarei à narração da estória sem mais floreados.


Mota carregada com os sacos laterais, a mala do túnel, uma mochila debaixo do banco, eu e a elisabete e ala que se faz tarde. A viagem correu normalmente. Os trinta e nove graus que o termómetro marcava não chegaram para quebrar o entusiasmo. Com uma paragem para meter gasolina chegámos a portimão cedo e, com alguma facilidade, apesar de não haver indicações, encontrámos o porto comercial.
Do barco nem sinal. Assim que chegámos fomos interpelados, ainda na mota, por um funcionário que nos perguntou onde íamos. Para o funchal, respondi mostrando o papel impresso com a tarjeta de embarque feita na net. O rapaz olhou para o papel e disse com toda a certeza: não esse papel não serve, tem que ir para a fila do check in. Claro que servia e na fila estivemos apenas escassos minutos.
Depois andámos por ali até que chegou, majestoso, o volcán de tijarafe. Já lá dentro, a olhar para uma coluna e para a burgman lembrei-me do aires pereira e da conversa no lunetas. Tinha-me esquecido de levar uma cinta para atar a mota. Com corda e uns trapos para proteger a pintura um companheiro lá do barco resolveu a coisa com engenho.
Aqui tem início a minha maior epopeia marítima, sim porque tratava-se de um cruzeiro - pelintra mas apesar de tudo cruzeiro – que preencheu 21 h das nossas existências. Tudo o que se passou naquelas 21 h são pormenores daqueles que já me valeram uma chamada de atenção um pouco mais acima, mas não resisto a contar alguns. Ela agora está distraída! Jantámos no self-service. Os preços a bordo são idênticos aos praticados nos bons restaurantes para camionistas. Seguramente que, se o armador fosse patrício, pagaríamos mais do dobro. Os navegantes mais endinheirados escolhem dormir em camarotes, eu e a elisabete preferimos recordar outros tempos e escolhemos as poltronas que apenas nos serviram de território base onde plantámos as mochilas. Depois de uma brevíssima passagem pelo bar/discoteca onde se ouviam em altos berros as músicas típicas destes sítios, fomos procurar uma espreguiçadeira para passar a noite.
Por esta altura percebe-se que acabámos por ficar num imenso camarote com um número infinito de estrelas a preencher o nosso tecto. Embalados pelo mar dormimos algumas horas. O dia seguinte passou-se à beira da piscina e, para mim, assentou numa coincidência daquelas que só se explicam pelo acaso: li, quase de uma assentada, um dos livros de mário de carvalho “fantasia para dois coronéis e uma piscina”. Prosa inteligente e hilariante por demais adequada à realidade que nos rodeava, a saber, uma animação, quase, permanente para turistas, que me escuso de adjectivar, com um música omnipresente e omnipotente.

O mar é aquilo que todos sentimos, imenso, azulíssimo nestas paragens e com golfinhos. Navegar é uma espécie de desnascer, uma espécie de retorno a uma atmosfera húmida de sal e sol e noite, que nos embala e acaricia ininterruptamente por uma brisa que nunca se detém. Tal como quando nascemos, já depois de sair do barco persistem reminiscências da travessia, dizem os pescadores algarvios que ficamos almareados. E foi assim que chegámos ao hotel escola no funchal. Não! Não vou falar do polícia músico nem dos 3 ou 4 papelinhos onde desenhou o complexo mapa que nos permitiu chegar ao hotel. Também não vale a pena falar da opinião crítica que teceu sobre o suposto compadrio que levou o alberto joão a contratar um amigo para fazer a estátua do enforcado. Devo apenas dizer que a escultura de uma espécie de Ícaro suspenso pelas asas é lindíssima e fica na estrada monumental pegada ao hotel escola. Só uma breve nota sobre o hotel: fica a 6 km do centro do Funchal, tem 20 quartos, piscina e é uma escola de hotelaria. Recomendo vivamente pela óptima localização, pelo preço e pela dimensão. A tranquilidade é total. Do quarto vê-se o mar e bananeiras.
No átrio estavam uns engravatados de copo na mão numa qualquer vernissage. Atravessámos o espaço com as malas da mota, as mochilas e o aspecto que imaginam e ouvimos: estes devem ser da comunicação social! Rimos e enfiámo-nos num duche rápido para conseguir chegar a horas ao jantar que tínhamos marcado com a susana e o nuno que estavam na sua última noite de madeira. Conseguimos chegar junto à sé com meia hora de atraso. Jantámos na parte antiga da cidade num bom sítio, que eles escolheram, umas óptimas espetadas em pau de loureiro com banana frita. A noite acabou na esplanada do bar do museu com um, só um, jameson - para mim, para os outros não digo, não sou nenhum delator - e com muita e boa conversa sobre tudo, a madeira e os madeirenses e a arquitectura fantástica da casa das mudas na ribeira brava.
Durante o primeiro dia andámos pelo funchal e subimos ao monte. O funchal é uma cidade bonita. Estende-se ao longo de uma baía, a cidade antiga de uma ponta funde-se com a cidade recente e a zona balnear do lido na outra ponta, para lá do porto comercial. Para terra espraia-se pelo vale num povoamento disperso que marca o urbanismo de toda a ilha, com maior incidência do lado sul. O lado norte é mais selvagem e com aglomerados urbanos um pouco menos dispersos.
Lembrava-me de poucas coisas do funchal de há 32 anos. O mercado dos lavradores estava associado a uma explosão de cores de frutos tropicais e flores e peixes com formas e dimensões novas para mim. O mercado do funchal de hoje ainda tem, orgulhoso, a mesma designação, mas as cores já não explodem em surpresa de formas, cheiros e conteúdos. Sinal dos tempos, do já nítido abandono de algumas terras, reverso da medalha de um crescimento que parece notável mas com custos que se vão projectando para um futuro cada vez mais próximo. A madeira de hoje ostenta dezenas de km de túneis e vias rápidas.
Os caminhos do passado ainda permanecem, revelando uma cultura que vai soçobrando atravessada pelas vias do crescimento rápido e homogeneizador. Os países que eu conheço na europa com melhores indicadores de qualidade de vida - irlanda e noruega – têm redes viárias rudimentares. O desenvolvimento não flui pelas auto-estradas. Em portugal essa lógica megalómana das grandes obras públicas, a curto prazo, maquilha os indicadores macroeconómicos gerando contextualmente emprego e crescimento pouco sustentado da economia. A longo prazo, como não gera só por si factores sólidos de desenvolvimento, vai projectando um futuro de incertezas, decorado por perigosos índices de endividamento.
A subida para o monte, pelos caminhos que percorri, foi possível na burgman mas, certamente, teria sido muito difícil e arriscada, na goldwing. No monte os carreteiros passeiam turistas numa descida com uma enorme inclinação. Correm atrás, sustendo, a força de braços, os carros de vime que transportam duas pessoas, numa desvairada corrida monte abaixo. Fiz essa descida há 32 anos e fiquei com a impressão que um ser humano não tem o direito de se servir da força física de outro assim, mesmo pagando muito dinheiro.
Berardo vai plantando arte por todo o lado. No jardim tropical monte palace os critérios estéticos são muito difusos. A entrada custa 10€ para percorrer um exuberante jardim onde arte africana se mistura com arte oriental e painéis contemporâneos que relatam a história de portugal. À saída do parque comemos bolo do caco com manteiga de alho num sítio com ar de tasca improvisada de feira, explorado pelos carreteiros, com uma vista soberba sobre o porto do funchal.
Monte abaixo, monte acima atravessámos a ilha para norte e fomos ter a santana. Curvas e mais curvas, em gancho, a subir, a descer, com inclinações que excedem, por vezes, os 15%, são as características das estradinhas bordejadas de verde e flores, lindíssimas!
Acabámos o dia no machico onde estava a decorrer uma feira gastronómica. E que fim de dia! A feira povoa um imenso espaço de lazer junto à praia contíguo ao fórum machico, imponente e talvez excessivo, mas invejável, espaço cultural de arquitectura contemporânea, de linhas muito depuradas e funcionais.

O recorrente bolo do caco com manteiga de alho acompanhou umas fantásticas lapas grelhadas e um picado (vitela frita com um molho excelente com gosto a alho, louro e manteiga). Na madeira bebe-se uma cerveja lá fabricada que se chama coral. É boa! As amplitudes térmicas são muito reduzidas, oscilando nesta altura do ano entre os 22 e os 27 graus, por isso não temos que ter especial preocupação com o frio à noite, quando viajamos de mota. O segundo dia teve como destino principal o pico do areiro. Situado a 1800m permite avistar o mar que bordeja os dois lados da ilha. Mesmo em frente ergue-se o pico ruivo ainda mais imponente e reservado apenas aos caminheiros. Tinha sido giro fazer a caminhada de mais de 2 horas mas não estávamos equipados para isso. O trilho perde-se em escarpas e desfiladeiros que desafiam a gravidade.
Descemos para voltar a subir e logo descer, e sempre o verde e as flores e quando paramos num miradouro logo aparecem, como que a dar-nos as boas vindas, as lagartixas que parecem que nos esperam e por nosso intermédio uma ou outra migalha de alguma coisa comestível.
Estavam esgotados os 3 primeiros dias. Ainda havia muita ilha para ver, muitos trilhos a percorrer. A burgman, neste sobe e desce permanente de cerca de 700 km e nos 500 km de évora-portimão-évora, nestes últimos com as malas, fez um óptimo consumo global de 5.9 l/100 km.